sábado, 26 de fevereiro de 2011

O DESPERTAR DA desCRENÇA


Há sempre um pouco de razão na loucura. (Friedrich Nietzsche)


Em uma madrugada quente de Campinas/SP, eu estava de joelhos na sala da república onde morava. Todos estavam no quarto dormindo e eu acabara de assistir a um filme sobre quatro amigos órfãos inseparáveis (December Boys) que havia feito com que eu desabasse em lágrimas há muito extintas. Eu chorei copiosamente quando um deles não quis ser adotado (o grande sonho de cada um) após perceber que a sua verdadeira família era composta pelos três inseparáveis amigos.

As palavras daquele menino fizeram-me perceber o quanto eu tinha muitas coisas a resolver com meus familiares e amigos, e que, apesar de todas as dificuldades, sempre temos uma família a nos amparar, ainda que esta não seja a convencional: papai, mamãe e irmãozinhos. Neste dia eu orava e chorava, recordava, odiava e perdoava – eu cria que Deus era deus e estava ali.

Como já disse antes, a imagem do Deus Pai é importante para aqueles que tiveram um bom pai, algumas vezes até significante para aqueles que tiveram um mau pai. Comumente difícil para aqueles que não acreditam na imagem do pai e precisam acolher a Deus como um pai que age como uma mãe. Para mim a imagem de pai era, naquele momento, acolhedora; eu estava diante de um pai que me abraçava no momento de solidão, acolhia meu pranto ao invés de gerá-lo.

Mas foi de joelhos também que a conflitante imagem do sagrado pai começou a desmanchar. Na mesma república eu estava de joelhos, conversando com o sagrado pai, até que parei e comecei a rir. Eu estava me sentindo um louco que desabafava ao vento, que falava a si mesmo. Eu me sentia enganado pela experiência passada que para mim, naquele momento, havia sido apenas uma explosão da solitária catarse. Lembrei-me de alguns dos meus amigos que falam sozinhos; eu os acho loucos e rio deles ao os ver nos intermináveis e silenciosos monólogos, foi como um deles que me senti. O resultado foi inevitável, a mente forçou e a boca riu, eu não chorei naquele dia, ri muito. Era tudo muito engraçado – eu cria que eu era o meu deus e somente eu estava ali naquela cômica tragédia.

Depois me senti muito mal por aquilo. O existente e inexistente deus deveria estar muito aborrecido com aquilo tudo. Ajoelhei-me novamente pedindo perdão, fiz cara de sério e tentei chorar, mas sem êxito, tudo era ainda muito engraçado. Optei por não correr o risco de ver um raio rasgando o teto e atingindo minha língua, até hoje não dobrei mais os meus joelhos, quase fiz isto, mas resisti.

Alguém disse que um louco deixa de ser louco quando toma consciência de sua loucura. Eu sei que não sou louco; bem “saber, saber, saber, eu não sei não”, mas desconfio que não o seja. Sei que chegará um momento em que eu terei que dobrar minha mente, pensar e repensar em tudo que eu sempre pensei acerca de tudo que se chama divino e sagrado. Ainda não sei se irei rir ou chorar. Estou evitando ter que optar por uma dessas expressões tão prazerosas. Enquanto isto não acontece, eu encontro o sagrado nos seres vivos, nas pessoas, nas plantas e nos animais – e talvez seja isto somente. Eu encontro o sagrado em meu corpo, em minha alma e em minha mente. Se tudo isto é Deus, eu encontro a Deus.

Um leitor atento deve estar se perguntando:
– Como ele ainda está confuso com tudo isso!

E eu, sem orgulho, respondo:
– Sim, ainda estou!



A psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia. (Foucault)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Imagine

Eu não posso negar que sou influenciado por muitas letras de músicas, principalmente se forem de Engenheiros do Hawaii, Legião Urbana, MPB, Beatles e outros tantos bons. Há alguns meses, quando eu pedia o cancelamento de minha ordenação ao sacerdócio protestante presbiteriano, alguém humildimente me perguntou: mas irmão, será que você não está sendo levado por alguma vã filosofia? 

O bom homem se referia ao texto escrito pelo cristão e apóstolo Paulo, que advertiu aos cristãos da antiga cidade de Colossos dizendo: cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua vã filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme o rudimento do mundo e não segundo a Cristo (Carta de Paulo aos Colossenses, cap. 2, verso 8). Em meio aos tantos letrados que me interrogavam à mesa estava este homem, que foi o mais simples, profundo e acertivo. Alguns dos letrados presentes apenas me olhavam se perguntando: como esse fedaputa (lê-se "rapaz") faz isso com a gente? Ou quem sabe: por que eu não tive coragem de fazer isso ainda? Mas deixemos isto pra lá (por enquanto).

É verdade "bom homem", eu me deixo ser levado por todo pensamento livre, aberto e bem formulado. Gosto de observar o que os outros tem a dizer. Se eu seguir a lógica de Paulo no texto supracitado eu terei que dizer que pouco dos pensadores que ouço ou leio se opõem a ele, Jesus. Normalmente estes se opõem à interpretação cristã acerca do próprio Jesus. 



Talvez a música de Imagine, de  John Lennon - que dá título a este post - pode ser considerada por muitos uma das tantas "vãs filosofias" que me enredaram. Alguns podem até dizer que ela se opõe ao "evangelho (a boa notícia) segundo Jesus", mas não. Jesus até faz uma segunda voz para John em boa parte da música, especialmente na que diz: imagine não existir países, nada pelo que matar ou morrer e nenhuma religião também, imagine todas as pessoas vivendo a vida em paz; imagine todas as pessoas compartilhando todo o mundo.

Isto basta! Aí está a mensagem de Jesus, John Lennon, Madre Tereza, Mandela, Gandhi e outros tantos homens semelhantes a nós que passaram por esta terra tentando mostrar a nós, consumidores egoístas, que precisamos compartilhar, olhar menos para nossas necessidades mesquinhas (as não-necessidades que pensamos serem necessidades) e socorrermos aqueles que estão morrendo todos os dias com reais necessidades.

Imagine se não houvessem fronteiras e vivêssemos em favor uns dos outros, lutando pelo bem comum e não para a preservação de nossas únicas vidas. Enquanto discutimos se há ou não verdades além do corpo e da mente ignoramos o que realmente há frente aos nossos olhos. Este nosso egoísmo e medo quanto ao que há além da vida é que nos faz criar um deus à nossa imagem e semelhança; daí sim tenho que concordar com Voltaire ao dizer que "se deus não existisse nós o inventaríamos", os crentes do deus ocidental (Deus, Jeová, Senhor etc) normalmente o têm como uma reposta ao, até então, desconhecido, ou ainda como um responsável pela salvação que levianamente não conseguem efetuar. Deus não pode ser uma resposta ao desconhecido, não pode ser o responsável pela salvação, não pode ser nossa imagem e semelhança - tudo isto é faculdade nossa. 

Eu aprendi a tropeçar em miseráveis quando vivi em Campinas/SP. A dinâmica da cidade grande nos deixa muito insensíveis. Na busca de separarmos mercenários de necessitados acabamos por desprezar a todos e, normalmente, ficamos tão apressados e apreensivos que nos desviamos dos intocáveis. Certa vez passei por uma rua onde se encontrava uma mulher com seu bebê, ambos sujos e mal cheirosos. Ela disse: moço, "me dá" um dinheiro pra "mim" comprar uma bolacha pro meu filho? Como recém adaptado à realidade, eu os pulei e simplesmente disse que não tinha dinheiro para ela. Mas a bendita música salva e condena minha alma há muitos anos. Enquanto eu a olhava e dizia não, seu bebê começou a chorar e, enquanto caminhava rumo ao meu destino, escutava-a cantando ao ouvido do bebê: Deus está aqui, aleluia, tão certo quanto o ar que eu respiro, tão certo quanto o amanhã que se levantará.

O que dizer nesta hora? O ar que o bebê estava respirando estava prestes a acabar e o amanhã talvez não se levantaria. A única imagem palpável de Deus acabara de ir embora sem nada lhe dar. Eu voltei até aquela família, charlatã ou não, e lhes dei as moedas que tinha nos bolsos (uns R$ 3,00). Sim, eu poderia ter comprado a bolacha e bla bla bla bla ... mas naquele dia todas as minhas belas palavras eram trapos, toda minha retórica um silêncio infindo.   

Teologia, filosofia e outras cogitações acadêmicas são todas vãs quando pensam que podem alimentar o corpo com palavras que enchem somente os ouvidos de promessas vazias que não alimentam o estômago. Aliás, qualquer mensagem sem ação é vã e vazia. 

Imagine there's no heaven, 
It's easy if you try. 
No hell below us 
above us only sky. 
Imagine all the people 
living for today...



"Já estou cheio de me sentir vazio." (Renato Russo)

"Nem só de palavras vive o homem." (Eu, um herege em potencial.)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O Medo da Morte


Eu sei que determinada rua que eu já passei não tornará a ouvir os sons dos passos. A morte surda caminha ao meu lado e eu não sei em qual esquina ela vai me beijar. Oh morte, tu que és tão forte que mata o rato e até o homem. Morte, morte, morte, que talvez seja o segredo da vida! (Raul Seixas)


Você já pensou em não morrer hoje? Isto mesmo, em não morrer. É nisto que pensamos o tempo todo. O nosso corpo luta a todo instante contra isto. Quando pensamos em morrer é porque, logicamente, há algo errado. Pensamos em morrer quando não encontramos mais saída para alguns problemas da nossa vida, alguns até banais. Aqueles que chegam ao ápice de tal desespero tiram suas próprias vidas, eis a máxima do desespero humano, disse Sören Kierkegaard.

O suicídio é a forma mais desesperada do ser humano em encontrar solução para sua crise existencial. Para que uma pessoa chegue a tal ponto todos os recursos do mundo tem que de se tornar inválidos, não há mais esperança, solução e paz. Quando estamos cansados de ser “vilipendiados, incompreendidos e descartados” (Clarisse - Renato Russo) até pensamos que a passagem para o tal lado de lá é a melhor solução; a morte nestas horas é um descanse em paz. Mas creio que até mesmo “na hora de nossa morte” (amém) o corpo ainda luta contra a mente, dizendo: eu quero viver.

Mas o suicídio não é o nosso foco hoje, mas sim o medo da morte. Estou começando a ver – e posso estar completamente enganado, correndo pro lado errado (Engenheiros do Hawaii) – que tudo que fazemos tem em sua essência o medo da morte. Todas as religiões, por exemplo, culminam em céus, paraísos e vidas pós vida. A ciência em toda a correria para aumentar o tempo de vida do homem, adiando a sua morte. O sexo heterossexual na busca da preservação da espécie. Comida e água para mantermos o corpo vivo. Grandes feitos para nos eternizarmos.

A ressurreição do corpo e a não morte da alma são os temas mais comuns entre as religiões, poucos são os aniquilacionistas, em geral quem crê em suas verdades e as seguem, ainda que morra, viverá e talvez nem veja a morte, pois presenciará o triunfo escatológico pertencente a cada crença. Logo, como normalmente estamos condicionados pelo velho e bom capitalismo, começamos o comércio de verdades melhores que as outras, na incansável busca por mais e mais fregueses que procuram os sacros remédios contra a morte. Ainda condicionados pelo partidarismo dizemos que quem não consumir do nosso produto não poderá ter a vida eterna, perecendo em uma morte cíclica.

Será isto mesmo? Se for eu não posso estragar tudo (quanta prepotência!)! Porém, ainda que pense assim, eu morro de medo da morte, mesmo desejando-a muitas vezes. A vida é muito boa para ser “morrida”, aprecie-a sem moderação.


De repente
J.Souza

E de repente você já não está mais ali.
As pessoas estão chorando,
mexendo em suas gavetas,
guardando suas coisas,
trancando seu quarto,
levando suas fotos,
falando baixinho,
recordando bons momentos,
relembrando o último adeus,
pedindo desculpas,
declarando amores.

Ninguém sorri,
todos choram.
Ninguém é ateu,
todos reclamam a Deus.
Uns perguntam por quê.
Outros respondem: Ele sabe.
Uns dizem eu lamento.
Outros: Deus lhe guarde.

De repente o dia acaba.
Uns dormem, outros não.
De repente os meses passam,
uns relembram, outros não.
De repente os anos passam,
uns recordam, outros não.
De repente eles chegam também,
e tudo volta outra vez.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Nos embalos do sábado a noite


Todo mundo espera alguma coisa num sábado a noite...


O sábado a noite é bem melhor do que eu suspeitava. As almas se dilatam, abrindo-se ao desconhecido e a vergonha é um ser desconhecido, como no Éden. É no sábado a noite que encontramos aqueles que deveriam estar do nosso lado, mas que estão do lado de lá, assim como vemos os que estão ao nosso lado passando para o lado que deveriam estar (Renato Russo). Você se sente, inicialmente, o cara estranho que chegou e não acha lugar no próprio corpo (Los Hermanos); horas depois, fora do próprio corpo, você flui e usufrui.

Todo mundo espera alguma coisa num sábado a noite, bem no fundo todo mundo quer zoar; sábado a noite tudo pode mudar, tudo pode, pode tudo (Cidade Negra). É no sábado a noite que perdemos e ganhamos nossa alma, relaxamos e não reprimimos nosso coração, despimos e não cobrimos a mente. A boca consegue falar o que o coração nunca sentiu, o coração consegue sentir o que não dá para com a boca falar – daí você fala com outras coisas. A perna direita pensar ser esquerda e quer passar pro lado de lá. A esquerda fica revoltada e quer o outro lado tomar; daí então você precisa possuir, como anjos e demônios, as pernas, os braços e o corpo de alguém.

Os olhos, coitados, como sofrem! Eles ficam irritados com tanta agitação, ofuscam a própria visão na esperança que você pare e os deixe descansar. O corpo que se foda – eles pensam! Eu só quero apagar. Então começa a confusão no mundo que carregamos sobre os pés.

– Tenho muita sede! A boca diz.

– E eu com esta fome e enjoado! Retruca o estomago.

– Anda logo com vou molhar esta calça! Diz o excitado.

– Manda mais ar! Grita os pulmões.

Alguns choram desesperadamente, outros riem irritantemente. Alguns brigam enquanto outros apartam as brigas, outros caçam brigas enquanto outros riem das brigas. Alguns ficam entorpecidos, outros desnorteados, outros de corpo e alma embriagados. Alguns estão se enchendo com tudo, outros se esvaziando para todos. Alguns estão de vazio enchendo o vazio que tem, outros esvaziando a mala e doando aos que também estão cheios. É assim, pessoas vazias nunca se enchem, enquanto pessoas cheias nunca se esvaziam.

Preciso concluir dizendo então que não posso concordar completamente com Vinícius de Morais (que absurdo) que disse: hoje é sábado a noite e os bares estão cheios de pessoas vazias. Nem todos estão tão vazios, Sr. Vinícius de Morais. Queres encontrar lugares cheios de pessoas vazias? Divague com sua alma no domingo a noite.

Vamos nos permitir

Eu vejo a vida melhor no futuro, 
eu vejo isso por cima de um muro de hipocrisia que insiste em nos rodear.

Estas não são as palavras de um dos profetas bíblicos ou deus mitológico. São as palavras do cantor e compositor brasileiro Lulu Santos. E é uma previsão sem perspectiva para muitas pessoas.

Até mesmo a maioria daqueles que pregam a liberdade vivida por Jesus, por exemplo, têm muita dificuldade em vivê-la. A profecia de Lulu Santos continua dizendo que ele vê “um novo começo de era, de gente fina, elegante e sincera com habilidade pra dizer mais sim do que não”. Mas as pessoas ainda insistem em uma vida de negação. Dizem mais não do que sim, dizem não à alegria, aos seus instintos e impulsos, dizem não ao amor e à paz, aos novos amigos e às novas oportunidades.

O profeta Lulu continua diz: eu vejo uma vida melhor no futuro, eu vejo isto por cima de um muro de hipocrisia que insiste em nos rodear. Ê palavrinha perturbadora esta: hipocrisia. A hipocrisia é o ato de fingir ter crenças, virtudes, idéias e sentimentos que a pessoa na verdade não possui. A palavra deriva do latim hypocrisis e do grego hupokrisis ambos significando a representação de um ator, atuação, fingimento (no sentido artístico). Ela realmente insiste em nos rodear. Se você convive com algum grupo social diversificado, como um clube, igreja ou outras sociedades fechadas, você pode perceber como as pessoas estão sempre fingindo sentimentos. Infelizmente a maioria delas te beija na face e esfaqueia-o pelas costas, não concorda com suas atitudes e pensamentos, mas o faz se sentir acolhido e aceito por ela – e pelas costas o mata. Isto é hipocrisia, não é perdão ou acolhimento. Além do teatro, rádio e TV, não há onde se permita a hipocrisia!

A profecia continua, mas quero falar da parte mais marcante – “vamos viver tudo o que há pra viver, vamos nos permitir”. Parece ser um convite à iniciação desta nova era de gente fina, elegante e sincera. Para se permitir é preciso dizer mais sim do que não, para se permitir é preciso abandonar a hipocrisia, para se permitir é preciso olhar para frente e não para o tempo que não pode voltar. O pássaro se permite ao abrir as asas e pular do galho que foi, até então, seu porto seguro. Nós nos permitimos ao darmos o primeiro beijo, ao transarmos pela primeira vez e ao nos declararmos a alguém. Muitas vezes precisamos abrir mão dos cálculos e hipóteses para nos permitirmos e viver tudo o que há pra viver.

Mas como sou muito incrédulo, prefiro ver o compositor como um sonhador, não um profeta; pois tudo isto é surreal.

“Sem hipocrisia, vida melhor no futuro, permitir, fartura, satisfação, viver tudo, nova era...”

Ah, fala sério!